2018-04-10

O princípio do Mundo em Sacavém e o Biblio-meretrício

Primeiro vem o meu prazer de forasteiro. Lisboetas casmurros para quem Sacavém é e será sempre subúrbio em contraste com sacavenenses orgulhosos e um engano: o gps (ou deveria armar-me em europeísta e passar a dizer galileu? ok, o galileu) enganou-se pela centésima vez e fez-me circular pela Sacavém velha. Eu já estava atrasado para a sessão matinal do 2º Encontro Nacional de Comunidades de Leitores (vou aqui omitir "associados a Bibliotecas Públicas", porque quero ir mais além nestas palavras). Na verdade, eu acabaria por conhecer a Sacavém velha a caminho do restaurante do historiador e investigador sacavenense Paulo Condesso, mas é curioso o olhar do Estrangeiro, e não é só desde Camus. Afinal, Sacavém é bonita. E para teimosos mostre-se a magnífica travessa da Oliveirinha, a primeira rua de Sacavém, diz-se.

Um encontro nacional de comunidades de leitores já era um sonho quando o Jorge Silva, Presidente da ímpar Comunidade de Leitores da Maia (onde decorreu, com retumbante sucesso, o 1º Encontro Nacional), me convidou para o 2º Encontro Nacional, apoiado pela Câmara de Loures, entre outras entidades. E eu já tinha decidido que o circuito de lançamentos do meu terceiro livro, saído em Setembro ("Saramaguíada", Poética, 2017) seria feito quase exclusivamente em comunidades de leitores e escolas. Tem sido assim, ainda sem excepções, que obviamente admito, aqui e ali, embora já esteja cansado do modelo - que considero esgotado - do lançamento em que se sentam três a uma mesa, publicador, apresentador e escritor, e falam do livro. Como escritores não nos contrataram para palhaços, mas, já que andamos por aí, como o Santana Lopes, porque não dar o corpo ao manifesto, descentrando-o do ego?

Disse em Sacavém e repito-o aqui: pode haver egos entre os leitores das comunidades, pode haver "personalidades" e pode haver "protagonistas". Pode haver. Mas eu é que não encontrei nenhum. Como raramente os encontro nas escolas. Já em festivais literários chovem egos. E são os mesmo trinta, sempre, com honrosas excepções. Como o meio literário português são umas vinte pessoas, nesses trinta dez convidados. Temos, neste momento, uma situação de monopólio no agenciamento, fruto do abnegado trabalho dos criadores da Booktailors, o que, como amantes de livros que são - e eu tenho muita consideração por alguns deles e, se tenho menos por outros, admiro a cultura literária de muitos - , que portanto estão a colher o frutos do seu trabalho, mas o tempo do monopólio dá-lhes uma especial responsabilidade de montar festivais com uma quota de não agenciados, responsabilidade social e literária essa que nem sempre é cumprida.

O que, para mim, é menos compreensível, é que a maior parte das publicadoras e dos escritores andem alheados da importância dos leitores e das comunidades de leitores. A maioria de nós valoriza as bibliotecas públicas (não sei é se pratica actos em função dessa valorização), mas não valoriza, como devia, os leitores e as comunidades de leitores, a quem devemos, praticamente, tudo.

Esse sábado, 24 de Março, entre o magnífico Museu de Cerâmica de Sacavém (de manhã) e a Biblioteca Municipal de Sacavém (pela tarde), as conversas foram materiais, tiveram substância. Não houve dispersão. Houve propostas concretas e comunicação, ainda que pudessem, e devessem, estar representadas muitas mais comunidades e bibliotecas (é preciso muita humildade e trabalho na comunicação prévia, é preciso ir ter com as pessoas de todas as formas e convencê-las; a ideia de que só vai quem quer e de que já se mandou mails para todo o lado, se fez cartazes e banners, etc, etc, e "agora seja o que deus quiser" é, a meu ver, errada; temos de estar perto dos leitores, temos de lhes dar atenção e de os mimar, temos de pensar mais neles e menos em nós, escritores, críticos e publicadoras) mas isso torna 
manifesta a falta de uma rede efectiva de comunidades de leitores e bibliotecas (com expressão no espaço
virtual ou rede global) onde seja fácil trocar experiências entre actuais e futuros leitores, entre leitores e escritores, entre leitores e publicadoras (porque não? esteve por lá a Porto Editora), haver transferência de títulos entre bibliotecas e fazer rolar a bola de neve da leitura, que não, não está a regredir, embora todos andemos a tentar perceber o modelo que se irá impor neste século XXI - podendo fazer reflexões e preparar terreno para o Livro no Século XXII. E tudo isto pode e deve ter apoio do Orçamento, assim haja propostas para o Participativo.

Deixo para o fim a comoção.
É violento, para mim, o contacto com esas entidades superiores que são os leitores que só pensam nos livros.
É verdade que qualquer bom escritor tem de ser um bom leitor, mas dificilmente o escritor deixa de ler por oficina e com a pureza e a liberdade de um leitor que não está preocupado em criar. Pode tentar, mas ficará para sempre poluído do momento em que leu por oficina pela primeira vez. Ora, as pessoas que cultivam os livros pelos livros, com aquele espanto e maravilhamento primordial, devem ser preservadas como espécie em extinção. E temos de arranjar um modelo para estes leitores em extinção frutificarem, terem crias, contaminarem outros.

Obrigado Jorge, Carlos, Maria, Rita, Anabela, Vera, Paulo, David, Sandra, Maria Helena, Paula, Luísa, companheiros João Tordo e Isabel (e marido), e muitos mais. Obrigado a todos.

Eu, que respeito a elegância e a classe, mas fui nado e criado no Porto, onde vivo, gostaria de cultivar aqui essa complexa deselegância tripeira, essa forma de ser broeiro, que reclama o direito ao calão e à ausência de filtros, dizendo sempre, e digo-o comovido e penhorado, a escolas e a comunidades de leitores, que sou um verdadeiro prostituto literário. 


Por isso, usem-me.
E usem os escritores todos que conseguirem.
Frutifiquem.

Prometo que aqui darei notícia, pelos anos fora, dessa "dura" vida de biblio-meretrício.

@pguilhermemoreira 2018