2013-08-05

A janela redonda de Al Berto

Estas são as frases que me cabem no processo secular de desmaterialização e ascensão de um contemporâneo a mito. Pressinto que - embora historicamente implicado e demasiado perto - os anos oitenta do século vinte foram os anos de implosão, depois de ter explodido a condição humana na sanduíche das duas guerras com recheio de grande depressão, depois de ter explodido o sexo nos anos sessenta e setenta, a estética dos anos vinte aos anos setenta, todas as correntes artísticas até aos anos setenta, todo o mundo e todo o século implodiu nos anos oitenta: a indeterminação estética que ainda hoje nos faz sorrir, tão rica e diversificada que hoje nos devolve todas as modas a pretexto de regressos nostálgicos que são um pouco mais do que isso: nós, que os vivemos, e as novas gerações, que os não viveram, adoptam os oitenta sem vergonha e até com voracidade. Implodiu a liberdade sexual com a SIDA e implodiu a homofobia. Claro que não se advoga aqui que nos curámos de todos os sintomas: o ser humano e o mundo que deturpa para si tem tendência a adaptar-se e a ser ecléctico. Convoco a homofobia para voltar à célebre sessão de leitura da poesia do Al Berto pelo próprio no início dos ano noventa no bar Dom Dinis, e que nos voltou via youtube (aqui) de uma forma assombrosa, como se tivéssemos viajado no tempo, eu que precisava de saber o que afinal se tinha passado lá dentro quando vi os meus amigos sair esbaforidos do Dom Dinis dizendo que o Al Berto tinha sido insultado por um grupo de putos que não o deixaram ler a poesia. E devolvido os insultos. Ele não era realmente popular entre os estudantes universitários, fechado, diferente, pouco simpático, mas essa violenta noite despertou em mim a curiosidade de o seguir vida fora, apesar de tudo. Essa adopção literária não culminou na sua morte, mas na publicação dos Diários do Al Berto pela Assírio & Alvim, e nas longas sessões de leitura da primeira parte dos ditos na Almedina do Arrábidashopping.
 
Em particular as páginas escritas na Rua do Forte, em Sines, a olhar pela janela e a ver o mar, ou a não abrir a janela porque tinha muito frio e se sentia febril e doente, porque tinha muitas dores ou estava deprimido, para depois a voltar a abrir num dia azul, perfeito, descrevendo o movimento de barcos no horizonte ou o minimalismo da neblina e as pinceladas fantasmáticas que só os seus olhos viam, e quando o Al Berto dizia que ia apanhar o expresso para Lisboa eu só desejava que ele voltasse à Rua do Forte e àquela janela, que voltasse a sentir frio, calor, excitação, exaltação, depressão, que voltasse ao que o mar lhe devolvia, às gaivotas, aos barcos, ao sofrimento, à esperança. Com a ajuda da jornalista Raquel Ribeiro, que tem os seus laços com Sines e com o trabalho que fez sobre o Al Berto, descobri o lugar exacto dessa minha memória literária. Ia em família e pedi para me deixarem sozinho ali, enquanto esperavam pelo péssimo e caro (Al Berto teria dito assim) arroz de marisco do Varanda do Oceano, que terá tido melhores dias. Foram quinze minutos encostados à janela redonda, que fica ao nível do rés do chão: foram literariamente perfeitos e, por mais que eu saiba que não foi assim, ou pelo menos não foi sempre assim, para o Al Berto, a morte, a desmaterialização, a excelente edição dos diários com o toque da poetisa Golgona Anghel, fizeram o Al Berto subir, definitivamente, à condição de estrela, a tal que Saramago dizia que à terra pertencia. Eivo agora este texto das imagens que Al Berto via, tomadas com o cotovelo encostado à moldura da janela redonda da Rua do Forte. E embora fosse melhor que Al Berto cá estivesse, qualquer escritor aspira ao leitor que o tenta sentir desde dentro e através dos tempos. Assim.
PG-M 2013